#patrimónioSNS em destaque na revista MD Centro

#patrimónioSNS em destaque na revista MD Centro

Na edição número 18 da MD Centro destacamos espólio raro e único nas paredes e jardins da Maternidade Bissaya Barreto

Há mais de 60 anos que o labor e a criatividade de pintores, escultores e mestres do ferro forjado, da cantaria e da calçada portuguesa fazem parte da história peculiar da Maternidade Bissaya Barreto, em Coimbra.

O médico que deixou uma marca assistencial com forte impacto na cidade de Coimbra e na região – Fernando Bissaya Barreto – logrou perpetuar uma filosofia de bem-estar na forma de acolher e de cuidar do outro, ‘oferecendo’ outros enredos a quem estudava, trabalhava e recebia cuidados de saúde na Maternidade Bissaya Barreto. A MD Centro mostra estas peças únicas no contexto hospitalar, um olhar único e uma matriz que ainda hoje se perpetua, bem no coração da cidade e cuja área envolvente se reconfigura com a implantação do sistema de mobilidade do MetroMondego.

Para conhecer estes tesouros artísticos contámos com o apoio da Diretora do Departamento de Ginecologia, Obstetrícia, Reprodução e Neonatologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), Teresa Almeida Santos, do presidente da SRCOM, Manuel Teixeira Veríssimo, e, para nos auxiliar neste percurso de memória, tivemos a preciosa ajuda de Tomé Fèteira, ex-administrador da UGI Materno Fetal do CHUC.

Em 1946 nasceu uma pequena maternidade – onde hoje existem as instalações da Associação Académica de Coimbra  (AAC) – que nasceu da necessidade de dar à mãe e à criança cuidados de saúde. Em anexo, havia uma pequena secção de puericultura e de pediatria. Ao lado havia a ‘roupita dos pequenitos’, uma cozinha e refeitório para que, quando as mães fossem às consultas com os filhos, fossem todos alimentados. Igualmente foi feito um parque infantil destinado a crianças desfavorecidas. Entretanto, Bissaya Barreto viu que era necessário fazer uma maternidade com outros equipamentos, mais desenvolvida e foi assim que, mais tarde, abriu num edifício junto à Sé Velha a Secção do Instituto Maternal de Coimbra, onde já tinha outros meios, surgindo a origem do Instituto Superior do Serviço Social.

Na transformação que era gizada na cidade – com a demolição de grande parte do casario da Alta – e como a AAC “tinha umas instalações precárias, Bissaya Barreto concedeu, em acordo com o Ministério das Finanças, o terreno onde estavam implantadas as instalações da obra social na Avenida Sá da Bandeira à associação dos estudantes e, em troca, a Quinta da Rainha seria o local onde seria implantada a maternidade, numa obra que ficou concluída em 1957”. Tomé Fèteira descreve com minúcia o caminho fundador dos edifícios, cujo interior aqui destacamos.

É que nem só de construção civil e equipamentos hospitalares se faz a história deste polo de saúde. Desde 1956 até 1958, corredores, gabinetes de consulta, espaços exteriores foram objeto de um olhar artístico muito peculiar. “Todos os espaços foram sendo alindados. É preciso lembrar que, na década de 50, muito pouca gente tinha acesso a banda desenhada, muitos não saberiam ler...”, justifica o nosso inestimável cicerone.

Fábulas de La Fontaine, provérbios, adágios, contos populares e cenas de circo são as pinturas murais existentes, e que nos chegam até hoje pois houve sempre o cuidado de preservar aquelas estórias.

Assim, médicos, enfermeiros e auxiliares, utentes, amigos e seus familiares, podem apreciar as obras de arte que surgiram das mãos de dois afamados artistas plásticos – Pedro Olayo (filho) e João Assunção Diniz (ambos discípulos do pintor José de Campos Contente na Escola Avelar Brotero). Tomé Fèteira confessa que, muitos anos volvidos, Pedro Olayo (filho) lhe contou o contexto das histórias ali desenhadas.

“Tudo começa na receção às grávidas, na sala de espera nas consultas externas. A ideia é que as pessoas fossem daqui mais ricas. É evidente que há sempre alguém que pode não gostar, mas temos de encontrar o equilíbrio”, assume o antigo administrador.

A arte desafia a intemporalidade desde 1963

O Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra tem aqui um espólio de valor artístico e patrimonial incalculável. Esta unidade do Serviço Nacional de Saúde, que é referência nacional, foi inaugurada em 1963. “Tudo tinha uma lógica, ainda hoje esta filosofia é atual. Havia um objetivo geral de ensinar, de informar, de acolher quem aqui vinha, é muito interessante ver estas pinturas”, destaca Manuel Teixeira Veríssimo, sugerindo que, tendo em conta as circunstâncias do País e o modo de vida daquela época, “há 50 anos isto seria um paraíso para as crianças e para as mães, pela forma acolhedora com que estes desenhos surgiam pelos corredores e salas”. Retorquiu Tomé Feteira: “Sim, ele entendia que os cuidados não deveriam ser prestados de qualquer forma, deveriam estar enquadrados de maneira que as pessoas se sentissem bem”.

O complexo da obra assistencial materno-infantil em Coimbra, com a Maternidade de Bissaya Barreto em destaque, fora aliás inaugurado no dia em que o médico natural de Castanheira de Pêra foi distinguido com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.

Naquele complexo, o médico cirurgião idealizou e mandou erigir o Ninho dos Pequenitos, o parque infantil, a creche, a escola de enfermeiras parteiras, os lactários, as consultas externas, o dispensário de profilaxia e defesa da criança. Um modelo arrojado na época tendo em conta o projeto social subjacente.

Reportando-se ao movimento artístico plasmado no muralismo, Tomé Feteira volta a reforçar que, “naquela época a televisão estava a dar os primeiros passos, muita gente não saberia ler nem escrever. As crianças entravam aqui para uma consulta, por exemplo, e a própria mãe – ainda que não soubesse ler – lhes faria despertar um mundo mágico”. Mundo esse que foi sendo sempre conservado, com as sucessivas pinturas das paredes a contornar os diversos pontos de interesse visual e artístico.

A ‘invisível assinatura” de dois artistas

O pintor Pedro Olayo – também conhecido, no mundo artístico, como Pedro Olayo (filho), aprendeu a arte com os mestres José Contente e Edmundo Tavares. Viajou e estudou pela Europa do Sul, sobretudo em Madrid e Paris. Acabou por escolher Itália para a graduação, licenciando-se em Belas Artes em Florença. Assunção Diniz, por seu turno, é referido pelo virtuosismo do desenho no blog do artista Deolindo Pessoa Cadima. Também ele terá sido discípulo de José Contente e tinha um traço muito característico. “Com Assunção Diniz as crianças eram mesmo crianças, ele tinha um traço muito pueril”, explica o nosso cicerone, lamentando a morte prematura deste artista de Coimbra.

É num gabinete de pediatria – agora reconvertido para as consultas externas que fazem parte dos cuidados regulares na saúde da mulher (rastreios e exames ginecológicos) – que surge uma das maiores surpresas. Assunção Diniz retratou-se a si e a Pedro Olayo numa das paredes. Foi a 6 de maio de 2013, quando se assinalaram 50 anos da MBB, que Pedro Olayo partilhou esta identidade invisível com o antigo administrador e lhe contou as histórias destas pinturas murais, escrevendo no livro de honra: “João Assunção Diniz era aquele rapazinho de camisola às riscas e Pedro Olayo é o menino de cabelos encaracolados, estilo maestro”, aponta Tomé Feteira, olhando para aquele quadro colorido com um palhaço e orquestra. “Eram espaços de sonho, não assinando as pinturas murais, ficaram cá neste quadro”, sublinha. Mas há quem tenha a assinatura bem visível, como é o caso do pintor e ilustrador português António Pimentel, um dos co-fundadores do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. “Estas obras remetem-nos para o ciclo da vida”, sugere.

“Todas estas pinturas murais ficaram para sempre nas paredes do então Instituto Maternal, no Ninho dos Pequenitos, na creche… Lamentavelmente, a estatuária não foi resistindo às investidas dos estudantes durantes os festejos académicos”. Há ainda neste vasto edifício, um bengaleiro que é atribuído ao mestre do ferro forjado José Pompeu Aroso. Bissaya Barreto também solicitou vários trabalhos ao pintor António Costa Pinheiro, que viera da Alemanha de propósito para realizar o trabalho encomendado.

Já na parte da sala de espera e do internamento, encontramos desenhos monumentais alusivos a Coimbra, o seu Jardim Botânico, o rio e o Choupal, pintados por Assunção Diniz (que assina as obras). E ainda uma pintura que retrata uma família à espera de uma consulta, por Pedro Olayo (filho) que assina a obra em 1958. “Tudo isto dá imensa vida aos diversos espaços”, acentua Manuel Teixeira Veríssimo.

Nesta visita, Bissaya Barreto é retratado como insigne filantropo e homem de pormenores, um cultor das artes e da arte de cuidar. Tudo estava interligado. Nas paredes exteriores, surge nos frontais da atual entrada da maternidade um monumental desenho com mosaico bizantino (uma árvore, a mãe que pega um recém-nascido) e noutro local, surge um presépio encimando o exterior de um dos vários edifícios da MBB e que é da autoria do escultor e medalhista Cabral Antunes. Do exterior é também possível ver as esculturas para as brincadeiras das crianças na creche: o cão, o burro, a ovelha, o elefante, um túnel para brincar, um escorrega…

Voltamos a entrar e acontece um casual reencontro do presidente da SRCOM com colegas que foram seus alunos na Faculdade de Medicina e que efusivamente se cumprimentam.

Em seguida, subindo à zona do antigo lar de enfermagem, podem apreciar-se as representações, também em pinturas murais, das cidades de Coimbra, Aveiro, Viseu, Caldas da Rainha, o jardim de Castelo Branco, a Serra da Estrela e a Figueira da Foz, de novo com o traço de Assunção Diniz e Pedro Olayo (filho). “É fundamental preservar este património”, assume o presidente da SRCOM.

Até na pequena capela há uma peça arrojada para a época: um confessionário portátil que se transportava até à cama das parturientes e das mulheres internadas por patologias várias.

Voltamos ao início desta viagem: eis-nos com Teresa Almeida Santos, Manuel Teixeira Veríssimo e Tomé Fèteira a caminhar junto ao mural de azulejo onde está plasmada a Carta dos Direitos da Criança. Mais uma peça artística da famosa Fábrica Aleluia (Aveiro).

Já no seu segundo meio século de existência, o local – referência nacional em vários domínios dos cuidados de saúde – é também um repositório da história cultural, artística e humanista da cidade de Coimbra.

Partilhe nas redes:

Ordem dos Médicos