Não devemos ter vergonha e medo de discutir a morte’

Não devemos ter vergonha e medo de discutir a morte’

O debate sobre eutanásia continua aceso. Surgem perguntas, multiplicam-se dúvidas, assumem-se convicções. Em Coimbra, no auditório Instituto Superior de Engenharia de Coimbra, uma reflexão ético-moral, clínica, jurídica juntou Carlos Cortes (Presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos), André Dias Pereira (Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e o Padre Luís Francisco (assistente espiritual do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra). A sessão organizada pelo Ateneu de Coimbra, pela Associação Pro 8 de Maio, e o Sindicato dos Professores da Região Centro, teve como tema genérico: "A Cultura Integral do Indivíduo: Eutanásia / Fim de vida". "Toda a discussão passa transversalmente pela ética, pois é o denominador comum, mas cada um oradores traz outras abordagens sejam elas legais, constitucionais, médicos, religiosos. Devemos ouvir as diversas opiniões e pensar nelas", exortou, no início, o presidente do Ateneu de Coimbra, João Duarte.
"Uma das razões que motivou esta discussão, mais do que uma conferência, é porque tivemos a percepção que devemos evitar o tratamento tabloidesco – quer político quer de alguma imprensa que apresenta factos de forma popular – evitar o 'quadro do politicamente correto' que condiciona a forma de cada um pensar", explica o cirurgião Fernando Martinho, que conduziu o debate. Recorde-se que, depois do movimento "Direito a morrer com dignidade" ter posto a circular um manifesto pela despenalização da morte assistida e que foi assinado por mais de uma centena de figuras públicas das mais de oito mil assinaturas, o tema tem estado na ordem do dia, sob diversos prismas.
Perante mais de uma centena de pessoas que acorreram na noite de segunda-feira, dia 11 de abril, ao Auditório do Instituto Superior de Engenharia de Coimbra, e ainda antes da introdução ao tema, o professor André Dias Pereira saudou esta iniciativa promovida por várias associações pois isso "torna a sociedade mais forte". "Conheço menos na carne este tema, mais nos livros. Com esta humildade venho dizer, não sou especialista de Direito Criminal nem especialista na matéria mas um estudioso do Direito Biomédico em geral".
Ao lançar o ponto de partida jurídico, André Dias Pereira destrinçou os institutos de eutanásia, o suicídio assistido, a sedação terminal, o testamento vital e os cuidados paliativos. E questiona, na sua intervenção: "Qual é o estado da situação em Portugal? É um crime praticar a eutanásia, seja eutanásia de compaixão, involuntária (o doente já está inconsciente) seria homicídio qualificado ou privilegiado. O homicídio é punido por 8 a 16 anos de prisão; o qualificado é por 12 a 25 anos. Aqui a pena (de compaixão) é de um a cinco anos. Isto tem um significado importante. Por exemplo, na Bélgica é feito a incapazes psíquicos e a crianças com problemas graves. Por isso se critica a Bélgica que admite estes casos excecionais. O que está em cima da mesa é o artigo que refere o homicídio a pedido da vítima (é preciso um pedido sério, um doente com capacidade de autodeterminação dos seus valores e das suas ideias), isto é crime em Portugal punível com pena de prisão até três anos. Seja um familiar seja um médico. Aqui é que alguns defendem que se poderia mexer, podendo abrir a porta à eutanásia (pessoas com dor física insuportável , doença incurável, e com um pedido expresso do doente". Portanto, diz em jeito de síntese sobre esta matéria que "o Código Penal atual criminaliza o médico ou o enfermeiro que pratique eutanásia, o Ministério Público deve abrir inquérito, pode deduzir acusação que poderá culminar numa pena de prisão até três anos". E, sobre esta moldura penal, André Dias Pereira assume: "O legislador português desde 1982 assume aqui alguma sensibilidade para a especificidade deste homicídio, porque em França e Inglaterra este crime é visto como homicídio normal, pena perpétua nesses casos". André Dias Pereira, cuja tese de doutoramento é intitulada "Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica", atual Diretor do Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, disse recentemente à Antena 1 que "A Convenção Europeia dos Direitos Humanos tem convivido quer com os países que, são a maioria, que criminalizam a eutanásia e o suicídio a pedido, quer com os países que descriminalizaram e regulamentaram estas situações de fim de vida. Portanto, está ao nível da escolha de lei.". De seguida, felicitando esta iniciativa e o convite para integrar este debate, o presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, aludiu desde logo a "confusão" que tem sido gerada em torno desta temática. "Este debate levanta algumas questões importantes que, muitas vezes, não discutimos. Desde logo a questão da morte. É impressionante como temos colocado de lado a questão da morte". Ao reforçar esta ideia-força, Carlos Cortes assinalou: "na nossa sociedade afastamos a ideia da morte". Ao fazer um flashback histórico, Carlos Cortes reforçou a ideia de que outrora a morte era encarada como forma natural. "Recordo-me que, quando era muito mais novo, a morte, o luto, os funerais estava presente. Hoje afastamos a morte". E citou até um estudo recente realizado em várias escolas norte-americanas, segundo o qual, a morte surge como uma das temáticas mais citadas pelas crianças, e só a seguir pelos pais e encarregados de educação. Recordo-me que uma das respostas que uma criança deu: "ela estava admirada porque sabia tudo sobre dinossauros mas não sabia porque o avô tinha morrido, porque ninguém lhe tinha explicado isso". Esconder a morte, advoga Carlos Cortes, é nefasto. "Não devemos ter vergonha e medo de discutir a morte", sublinhou. Para o patologista clínico, este debate é ainda interessante porque se centra "em eufemismos", isto é "não se fala de morte, fala-se em fim de vida". Na sua opinião, urge também falar abertamente no envelhecimento – "fala-se muito do envelhecimento mas antes da morte, essa discussão é retirada do tema" – e do sofrimento – 2a eutanásia é uma resposta ao sofrimento". Para lançar ainda mais ideias para a discussão, Carlos Cortes também abordou o facto dos cuidados paliativos poderem ser uma resposta, apesar de, "não serem universais no nosso País". E baseou a sua análise em números: "Setenta por cento dos portugueses que necessitam de cuidados paliativos não têm acesso a cuidados paliativos. Nós temos à volta de 400 camas para cuidados paliativos, são um apoio absolutamente fundamental para os doentes que estão em fim de vida, em sofrimento, mas a resposta está aquém das necessidades". 

Prosseguiu na sua intervenção: "A questão da morte é interessante porque desapareceu, curiosamente, a partir da segunda metade do Século XX. A resposta ao sofrimento também só começou a ter uma resposta do ponto de vista médico a partir dos anos 80 do século passado, uma vez que, até então, entendia-se que a dor fazia parte do processo da doença, E a esse respeito a medicina soube dar uma resposta à dor". Sendo a questão da eutanásia "apaixonante e fraturante", o presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos assume que atualmente há duas visões diferentes e antagónicas na resposta ao sofrimento; ou seja, a que pretende antecipar a morte para evitar o sofrimento e a outra que assume o facto de existirem respostas para o sofrimento.
Pegando, aliás, na etimologia da palavra eutanásia, que provém do grego, e que significa 'boa morte', Carlos Cortes partilhou a sua interpretação: "Por um lado, a morte doce, suave, que todos queremos ter sem sofrimento. Por outro, a morte heroica e épica, deixar uma imagem boa para a posteridade, que aconteceu com grandes personagens da História, guerreiros por exemplo.". A primeira vez que se utilizou o termo eutanásia, recordou o dirigente da Ordem dos Médicos, foi em 1603. Anos depois, em 1623, seria Francis Bacon, filósofo inglês considerado o fundador da ciência moderna, que explica a importância de retirar o sofrimento do fim da vida. Carlos Cortes lembrou ainda que a eutanásia que se fala hoje não é aquela, por exemplo, que teve o auge nos finais dos anos 30 do século passado, tendo feito, aliás, do ponto de vista histórico, uma resenha das várias formas da eutanásia até chegar ao dia 1 de abril de 2002, quando foi legalizada a eutanásia na Holanda.
"Existe uma grande desinformação na opinião pública sobre esta questão", asseverou. "Aquilo de que estamos a falar é do sofrimento: a dor física, a dor psicológica, a dor social, dor espiritual. Aquilo que a morte antecipada propõe é que seja antes da percepção do sofrimento. Quem defende a morte antecipada é que esse sofrimento seja suprimido. A discussão tem de ser centrada nisto: saber se podemos ter ou não a anulação do sofrimento. E hoje, graças às unidades de cuidados paliativos, podemos retirar esse sofrimento", disse. E, antes de finalizar a sua intervenção, contou abreviadamente duas histórias verídicas, de forma a lançar a reflexão. O primeiro caso passou-se com um doente com patologia respiratória crónica que esteve internado numa unidade de cuidados intensivos, tendo tido alta poucas semanas depois. O paciente revelou aos médicos que esteve apavorado com a sua situação, por uma razão simples. Tinha preenchido o testamento vital, no qual, por exemplo, teria dito que não queria que reanimação. Felizmente, o episódio ocorreu antes da informatização do sistema e felizmente ninguém encontrou o papel. A outra história revela um ato cultural: dois amigos holandeses estavam a tentar combinar uma férias de verão durante as quais costumavam todos os anos ir à pesca. Depois de escolherem o local, tentaram combinar uma data. Porém, um deles diz que esse dia era o dia da morte do seu pai. O amigo diz, surpreendido, que não sabia da morte do progenitor. Afinal, tal ainda tinha acontecido. O dia da morte estava previamente marcado, graças á eutanásia.

Outro dos oradores, o Padre Luís Francisco, assistente espiritual no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, também felicitou os organizadores deste encontro, defendeu, tal como dissera Carlos Cortes, a dignidade da morte. "A dignidade é uma ponte de consenso nesta questão", dizendo ainda que "o sofrimento não é necessariamente algo que surge no fim da vida". "Digo sempre não ao anátema e sim à ponte. A dignidade é um valor que nos transcende a todos e está claramente para além de nós.". Em seu entender, do ponto de vista do princípio, "não é a mesma coisa despenalizar e legalizar". E elencou uma "nova configuração do processo de morrer: o deslugar da morte, que passa a ser predominantemente no hospital; apareceram opções biomédicas; generalizou-se a autonomia do sujeito. Atitudes diante da morte: Muita gente morre sozinha; há quem diga que temos menos resistência à dor". E advoga uma visão holística, total, do indivíduo. "Escondemos a morte, mas devemos falar da morte", preconizou, concordando com Carlos Cortes.

À guisa de finalização, diga-se que este debate pautou-se pela tolerância e respeito de opiniões. Da assistência chegaram vários testemunhos para reflexão.

 

 

 

 

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